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E t P

Existe um domínio no qual a propaganda ocidental investe de modo especial na opinião pública da África, e esse assunto, alardeado através das suas ONGs cúmplices e seus governos, é o do domínio inexistente e ilusório da chamada “transferência de tecnologia”.

Isso por que convém recordar que, na configuração atual do mundo e das relações internacionais, não existe de fato transferência de tecnologia, e por várias razões:

AS REGRAS DA UNIÃO EUROPEIA

A Comissão de União Europeia, através da norma (CE) nº 772/2004 de 7 de abril de 2004, proíbe a transferência de tecnologia entre as empresas, e estabelece as exceções, pois julga que essa prática é ruim para a concorrência e impede o progresso da sociedade. Isso por que, a partir do momento em que uma empresa espera que sua concorrente lhe franqueie seus segredos de fabricação, ela passa a não inovar mais e não se esforça por se recuperar do seu atraso e obsoletismo. Por outro lado essa mesma prática leva as empresas de ponta a dormir sobre seus louros e a se comportar como patrão, decidindo e manipulando as regras do mercado. Noutras palavras, se uma empresa sueca passa seus segredos de fabricação à sua concorrente do Mali, corre no mínimo o risco de rebaixar esta última ao papel de simples espectadora, destinada a desaparecer cedo ou tarde, ou a estagnar num estágio marginal ou banal de satélite da empresa sueca quando lançada na passividade a qual não impõe pesquisas e tampouco o embate para manter seu lugar e conquistar novos mercados.

A Comissão Europeia vai mais longe na sua própria definição de savoir-faire(saber fazer), que, segundo ela, não comporta obrigatoriamente um elemento secreto. Ou seja, o fato de repassar a alguém uma informação, uma técnica, uma tecnologia não mais sigilosa não deve configurar transferência de savoir-faire e sim banal operação de tirar alguém da ignorância culpável em que se encontra.

Eis, em detalhe, como a Comissão Europeia descreve o savoir-faire, o know-how:

“Savoir-faire (know-how): conjunto secreto de informações práticas não-patenteadas, resultantes de experiências e testadas (ou seja, que não são do conhecimento geral ou facilmente acessíveis). O savoir-faire é substancial (quer dizer, importante e útil para a produção de produtos contratuais) e identificado (ou seja, descreve de maneira suficientemente completa para permitir verificar que preenche as condições de secreto e de substancialidade)”.

Se uma ONG ensina agricultores de BurkinaFaso a utilizar um trator para cultivar seu campo para assim se fadigar menos e obter produtividade maior e, ao fazê-lo, fala de transferência de tecnologia, ela mente conscientemente; pois as técnicas por ela ensinadas se acham disponíveis no domínio público desde séculos. A questão a se colocar antes de tudo é: por que essa comunidade de BurkinaFaso não teve acesso a uma técnica agrícola disponível no domínio público? Não importa que ela não possua os meios de procurá-la, ou que ela não tenha sido informada a respeito. Tanto num caso quanto no outro temos dois problemas específicos, bem identificados, a resolver e que, em caso algum, estão ligados a qualquer problemática da operação da transferência de tecnologia. Noutros termos, no que tange ao primeiro caso, a ONG que vem com o trator queima as etapas e impede de se colocar convenientemente o problema no sentido se criar as riquezas para o acesso a nível aceitável de apropriação das técnicas modernas. No segundo caso o problema da formação da África se coloca mais claramente: 70% da população africana vivem nas zonas rurais e agrícolas. Nos países froncófonos da África não há colégios agrícolas; mas só raros liceus agrícolas. Para a maior parte dos profissionais da área só existe a formação universitária para a formação de engenheiros agrônomos, todavia falta toda a panóplia da formação inicial e intermediária através pela qual se democratiza as técnicas agrícolas.

Para a Comissão Europeia, toda transferência de tecnologia não deve violar as regras de concorrência por ela criadas e sancionadas pelo artigo 101 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). E esta simples formulação significa a interdição da transferência de tecnologia de uma empresa estabelecida num país europeu para sua concorrente instalada num país africano, visto que as duas empresas se batem por conquistar os mesmos clientes e lucros. E − caso o sistema for à base da soma zero, isto é, o que uma ganha é automaticamente perdido pela outra − por que razão uma empresa florescente deveria “abrir o jogo” vendendo à sua concorrente seus próprios segredos de fabricação? Mesmo se no parágrafo 3 desse famoso artigo 101, e também nos artigos 3 e 4, a Comissão Europeia determine claramente as condições de isenção à interdição de transferência de tecnologia, o fato é que, na ausência de um acordo com “os graves efeitos da anticoncorrência”, na prática existe uma articulação para se colocar as empresas africanas fora da concorrência, fora de todo risco de se tornarem um dia ameaça potencial ou competidoras das empresas européias.

UMA VERDADEIRA MANIPULAÇÃO

A maquinação consiste em colocar a noção de “transferência de tecnologia” em todos os enfoques a fim se fazer as empresas africanas crerem que sua saúde viria unicamente da beneficência de um “branco” particularmente bom que lhes indicaria o rumo para que elas também possam ver o sol da modernidade industrial. Uma vez abaixadas as defesas das vítimas, passa-se à segunda etapa: tornar a África a lixeira da obsolescência europeia, o canal das sucatas ocidentais. Isso da indústria ao exército, passando pelas indústrias de vestuário e de automóveis. Tudo se articula para inundar a África de produtos, de máquinas, de armas que contribuirão para garantir que esse continente jamais se torne perigo, concorrente ou ameaça para a Europa.

Quando uma empresa espanhola decide descartar determinada máquina é mais frequentemente por que esta representa abismo financeiro no consumo elétrico ou custo muito elevado de manutenção e, em todos os casos, ela limita a competitividade da empresa em relação à suas concorrentes. Ceder tal máquina a uma empresa marroquina é condená-la a se endividar enormemente pela aquisição de meio de produção que, depois do dia da sua compra, não pode acompanhar o passo da concorrência. Tal prática representa compra prejudicial para o marketing da empresa marroquina e, inversamente, negócio (agradavelmente) inesperado para a vendedora visto que esta ainda consegue obter dinheiro por máquina finalmente descartada. Nada melhor, pois se ela tivesse decidido mandar tal máquina para o desmanche seria obrigada a pagar a empresa especializada pelo desmonte do conjunto da máquina e pelo trato diferenciado de cada componente sucateado, para assim evitar que as partes poluentes voltassem à Natureza. Ao ceder tal produto à empresa marroquina, ela obtém duplo proveito: mantém seu concorrente potencial nem estágio em que não pode lhe prejudicar e economiza a verba destinada à proteção ambiental.

É nesse mesmo espírito que os veículos sucateados têm sido descarregados na África com o objetivo bem estabelecido de impedir a emergência de marcas concorrentes de veículos africanos capazes de colocar em risco o lucrativo marcado europeu de automóveis. E, assim procedendo, força-se a mesma África se tornar mercado certo para os carros franceses e britânicos. E isso durou até que o terceiro aproveitador não esperado, o Japão, veio perturbar esse botim.

No setor da indústria de vestuário, as roupas habitualmente usadas e já tornadas rotas pelos europeus, chamadas na França de friperies, acabam enviadas para a África para uma “segunda vida” no principal objetivo de impedir que uma verdadeira indústria de vestuário veja o luz do dia nesse continente. Assim fazendo, a Europa poderia contar com uma mão-de-obra africana explorada à la volunté para lhe garantir o acesso ao excelente marcado do algodão africano, visto que este não poderia ser beneficiado localmente, e nisso é ajudada pelo financiamento público aos produtores norte-americanos desse produto. Essa estratégia reduz a zero toda a margem de negociação dos produtores africanos de algodão.

QUAIS AS LIÇÕES PARA A ÁFRICA?

A transferência de tecnologia não existe; trata-se de termo puramente virtual, sem aplicação num mundo real de empresas onde a competição é inclemente. Hoje se mede a verdadeira diferença entre as nações pelo número de patentes registradas a cada ano. A África deve recusar essa marginalização psicológica na qual se encontra confinada ao copiar brasileiros, indianos e chineses que passam todo o seu tempo a perscrutar pelas patentes expiradas para, assim, superar muito rapidamente seu atraso no plano tecnológico.

Isso se aplica a todas as áreas: da mecânica à petroquímica, passando pela indústria farmacêutica. Todas as patentes registradas pelos poderosos em dado momento terminam por cair em domínio público e é aí que precisa ocorrer a verdadeira transferência de tecnologia; aí se deverá conquistar soberanamente aquilo que seus antigos proprietários não estão contentes que se lhes tome. Convém partir dessas patentes, assim gratuitamente obtidas, para a maturidade que permitirá que se lance nessa concorrência internacional da inteligência constituída pelas patentes, pelos direitos dos autores, pelos copyrights. A cada ano centenas de patentes de medicamentos de cardiologia, neurologia etc., caem em domínio público e não importa quem possa reproduzi-las à vontade, pois tudo se processa legalmente. Milhares desoftwares, de peças mecânicas, de sistemas hidráulicos etc., entram em domínio público e não importa qual start-up possa deflagrar sua atividade em Lagos, Kinshassa, Niamey ou Lusaka copiando-os sem pagar um único centavo de pela pesquisa ou direito autoral. A Itália anteontem, o Japão ontem, a China hoje. Todas estão se levantam ao reduzir seu atraso tecnológico copiando sistematicamente todas as patentes logo que caídas em domínio público para, assim, não partir do zero. Tal prática colocou tais nações em posições privilegiadas ao ultrapassar os antigos proprietários dessas patentes. A África não pode se contentar em esperar reciclar as tecnologias obsoletas e inúteis que decidem vender-lhe a preço de ouro. Todos os escritórios de patentes no Ocidente pululam de obras, de detalhes sobre os velhos segredos de fabricação doravante à disposição e gratuitos. Basta haver a coragem de ir buscá-los onde eles estejam. A transferência de tecnologia, se de fato existe, não é ato angelical, mas requer primeiramente vigor, força moral e determinação sem o acanhamento de desejar frequentar as deliberações dos grandes deste mundo, e não mais como fantoche, como valete, como servo e sim como concorrente; como cérebro, como alguém inteligente e, neste sentido, a África nada tem a invejar das outras nações e continentes. Os poderes públicos africanos devem compreender tudo o que ganharão ao facilitar e encorajar os jovens à criação dos start-ups inovadores por meio de procedimentos administrativos simplificados. Nossa verdadeira independência também passará por essa apropriação da tecnologia.

Douala, 12 de abril de 2012

Jean-Paul Pougala

www.pougala.org

www.geoestrategiaafricana.com