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Ao usurpar-se terras, ao expulsar-se comunidades, ao contrair-se escandalosamente dividas públicas em nome de um povo não consultado, é no fundo ao corpo que se violenta, que se domina, que se tortura, que se expulsa. Para  o  controle  do  território  são  controlados  os  corpos.

Durante séculos o meu território esteve em disputa. Passados a escravatura, o colonialismo histórico e as “ingerências” de “deuses” de casaco e gravata, que ditaram as formas como deveriam funcionar os “novos” Estados independentes do terceiro mundo, a disputa parece persistir.

Hoje, o território que me viu nascer não só continua ancorado aos “Senhores” que perpetuaram a disputa, como chegam, dia após dia, novos “visitantes”, para se juntarem ao banquete. É um banquete verdadeiramente apetitoso e rico, justificado pela necessidade de assimilar as belas civilizações desses deuses e senhores para alcançar o desenvolvimento. Para além do sangue, do ouro, do marfim e dos bíceps do meu povo, agregam-se progressivamente terras aráveis, minas de carvão, jazigos de gás, petróleo, pedras preciosas, recursos marítimos, hídricos, e outras tantas “iguarias”, incapazes de caber na mais extensa mesa de banquetes reais.

Os novos convidados ao banquete vangloriam-se ao exibirem sua nova “categoria”, gentilmente concedida por aqueles que exercem a ditadura do desenvolvimento: são economias emergentes. Aos novos convidados lhes foi concedida a permissão para explorar, saquear e civilizar nossos territórios.

Estava certo Frantz Fanon, quando pressagiou em relação ao comportamento e papel das elites dos territórios pós-coloniais (a burguesa nacional), cuja missão, disse Fanon, nada teria que ver com a transformação das nações. No seu papel de intermediários entre os territórios e o capitalismo desenfreado (embora muitas vezes camuflado), as burguesias nacionais desempenham o papel de agente de negócios da burguesia estrangeira e respondem aos ditames dos “deuses” de casaco e gravata.

Nessa intermediação, vários sacrifícios são cometidos. Os representantes do meu território independente, politicamente controlado por nós (perdão, por eles) tentam arduamente convencer-nos da ilusão de que nós, locais, indígenas somos soberanos e tomamos as nossas próprias decisões e que todas as nossas ações (perdão, suas ações) têm o fim ultimo de trazer-nos bem estar, progresso, modernidade e civilização. Mas há aqui uma enorme contradição entre o que nos dizem e o que assistimos. Seus métodos rumo ao desenvolvimento têm um carácter sacrificial.

É curioso verificar como, em nome da consecução do bem estar, destrói-se o bem estar. Expulsam-se comunidades camponesas e produtoras em nome da produção. Cria-se fome em nome da segurança alimentar. Compra-se armamento em nome da paz. Assassinam-se indivíduos em nome da estabilidade. Destroem-se economias nacionais em nome do desenvolvimento económico, e a lista é extensa.

Estes são os dilemas e as contradições que caracterizam os nossos territórios colectivos. E o que acontece com o primeiro território de todos os territórios?  O corpo é um território. Um território de construção de relações, um território de apropriação, dominação e de controle. Ao usurpar-se terras, ao expulsar-se comunidades, ao contrair-se escandalosamente dividas públicas em nome de um povo não consultado, é no fundo ao corpo que se violenta, que se domina, que se tortura, que se expulsa. Para  o  controle  do  território  são  controlados  os  corpos. E para que os corpos não se rebelem, foi inventado o estatuto de pertença.

A que território pertencem os territórios-corpo que são constantemente desterrados de seus territórios de origem? Eu penso que, em princípio, os indivíduos deveriam ter o direito de escolher, inventar e reinventar os seus territórios em função das suas aspirações. Uns defenderão pertencer ao território onde nasceram, outros onde morrerão ou serão sepultados. Outros ainda defenderão pertencer ao território onde amam ou são amados. Há ainda outros com a prerrogativa de pertencer a vários territórios, entre onde escravizaram, colonizaram e onde podem, hoje, ter os banquete mais fartos. Estes são os privilegiados do mundo. Os donos do mundo. A injustiça deste mundo é tão cruel que vários são os que lhes é negado o direito de escolher o território a pertencer e acabam estando, forçosamente, onde as circunstâncias os colocam. Estão sem pertencer: ora são guerras, conflitos, usurpações, secas, cheias, fome, perseguição política, etc. Estes, condenados a não pertencer a território nenhum, são um conjunto enorme de corpos e almas nómadas, deambulantes, sem casa. São territórios-corpo sem territórios! São eles camponeses e camponesas vulnerabilizados e desterrados, ativistas sociais e políticos perseguidos, refugiados expulsos e aterrorizados, trabalhadores explorados, mulheres oprimidas, homossexuais ridicularizados, e a lista é extensa. Por opção política, pela obrigação humana e pelo imperativo de não me calar perante as injustiças e desigualdades, pertenço a este grupo de corpos, a este grupo de milhões de territórios-corpo sem territórios.

Poderemos estar distantes fisicamente, ou diferentes nos tons das nossas peles, ou diversos nas nossas religiosidades, e os espaços que separam nossos territórios (individuais e colectivos) poderão fazer-nos acreditar que não há nada em comum, nada de igual entre nós, entre nossas condições, entre nossas lutas. Há sim uma força que nos conecta, todos e todas. É a força da nossa humanidade. Urge estabelecermos diálogos (verbais, espirituais, visíveis e invisíveis...) entre nós. É preciso que reivindiquemos o respeito pela nossa humanidade. É preciso que reinventemos novas metodologias, novas praticas sociais, politicas e comunicacionais, próprias dos povos cujos territórios são invadidos, oprimidos, aniquilados, tiranizados. Precisamos de novas metodologias de luta e transformação desde os povos, pelos povos, para os povos.

Os mecanismos estabelecidos, que supostamente nos representam e defendem, oprimem-nos mais do que nos libertam. Falo dos mecanismos que o único direito que nos deu, a nós, corpos sem território, é, como diz Eduardo Galeano, o direito de ver, ouvir e calar-se. A democracia das nossas constituições é um fracasso total e está em crise. Não funcionou, não funciona, nunca funcionará.

É preciso que reinventemos novas formas. Nossas ações quotidianas precisam estar em sintonia com esse objetivo transformador, emancipador. É preciso que nos recusemos a permanecer nestas ilhas e guetos de pobreza, indigência, indignidade e desumanidade nos quais se perpetua nossa condição de corpos sem territórios.

Nossas ações precisam ser politicamente orientadas, porque, quer aceitemos, quer não, tudo o que fazemos é político. Comer é um ato político assim como é um ato político amar, dançar, cantar. Precisamos direcionar o que fazemos em nosso favor. Deverá ser um ato conscientemente político lutar pelo respeito aos nossos territórios, aos nossos corpos à nossa humanidade, às nossas casas.

Vai assim esta mensagem para todas e todos aqueles que permanecem sem habitar, nos vastos territórios difusos deste mundo.

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* - Este texto foi apresentado na Conferência Casa/Territórios: Sujeito, Democracia e Pertença, decorrido no dia 23 de abril de 2016, em Santa Clara, Coimbra.

Boaventura Monjane ([email protected]) é jornalista e ativista moçambicano. É doutorando em Pós-colonialismos e Cidadania Global, no Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra