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US Army

Quando se fala em África, para aqueles com consciência política, pensamos: Quem não tem medo do fantasma de Hegel? Neste texto, Jason Hickel comparece a um discurso proferido pelo embaixador dos Estados Unidos na União Africana (UA), Michael Battle, e descobre uma inquietante nova retórica sobre a África.

Nos últimos anos, houve um aumento expressivo nos esforços diplomáticos americanos na África que coincidiu com uma mudança decisiva no discurso político sobre o continente. À primeira vista, isso pode parecer um desenvolvimento positivo, refletindo uma atitude mais progressista com relação ao que por muito tempo foi considerada uma periferia global de pouca importância. Mas um olhar mais detalhado revela que a diplomacia americana na África está menos preocupada em servir aos propósitos do povo africano do que em garantir os interesses do capital privado americano. Em nenhum lugar isso ficou mais flagrante e claro do que nas falas de Michael Battle, o embaixador dos EUA na UA.

Primeiro, um pouco sobre Battle. Ele recebeu o título de Mestre em Divindade pelo Trinity College e o de Ph.D em Sacerdócio pela Universidade de Howard, e atuou no Centro Teológico Interdenominacional em Atlanta até ser nomeado para seu posto atual pelo Presidente Obama em 2009.

A posição de Battle na UA é nova e pouco conhecida fora dos círculos diplomáticos. Os EUA só estabeleceram um embaixador dedicado à UA durante o governo de George W. Bush, em 2006. Essa missão – conhecida como USAU – é a primeira desse tipo entre países não africanos, e foi elaborada para facilitar as operações dos EUA na África, de modo a ser uma alternativa mais ‘eficiente’ e ‘eficaz’ do que as relações bilaterais com Estados individuais africanos.

Este mês eu tive a oportunidade de comparecer a um discurso proferido por Battle durante sua visita ao Centro Miller de Assuntos Públicos na Universidade da Virgínia. Eu reparei na nova retórica diplomática logo no início de sua apresentação. Primeiro, ele se referiu à África como um continente de ‘grandes riquezas’ e ‘abundância’, sinalizando um notável abandono de representações anteriores e antigas da África como ‘desolada’ e ‘empobrecida’. Em paralelo a esse ponto, Battle falou longamente sobre a mudança da política dos EUA na África em direção a ‘investimento’ e ‘parceria’ corporativa, e se distanciando de ‘ajuda’ e ‘assistência’ pública.

Minha primeira impressão foi de que isso parecia ser uma boa notícia, mas o restante do discurso de Battle revelou suas reais intenções, conforme os dois objetivos principais da USAU rapidamente vieram à tona: segurança e comércio.

Em termos de segurança, Battle confirmou a dedicação dos EUA para trabalhar com a AU e o Comando Africano dos EUA (AFRICOM) para militarizar o litoral do continente. Embora alegasse que os objetivos dessa missão incluiriam reagir ao aumento da pirataria marítima e desarticular cartéis do tráfico ilegal de drogas e pessoas, ele deixou claro que o objetivo militar principal é proteger interesses americanos no petróleo do Golfo da Guiné, reprimir movimentos locais de resistência como o MEND na Nigéria, e garantir um clima favorável para o retorno dos investimentos de corporações americanas. Quando pressionado, Battle justificou seu argumento pela militarização invocando o espectro vago e pouco substancial do ‘terrorismo’.

Em termos de comércio, Battle falou animadamente sobre a parceria entre os EUA, a UA e o Conselho Corporativo para a África (CCA) para integrar e ‘liberalizar’ as economias nacionais do continente. A visão explícita de Battle é facilitar os esforços de corporações dos EUA como Chevron, Delta e GE (que ele mencionou explicitamente pelo nome) para expandir investimentos em diversas nações africanas através da ‘harmonização das regras de comércio’ e ‘simplificação de regulamentos’.

Ele elogiou a UA por desenvolver o ‘livre comércio’ no continente em ritmo mais rápido do que a União Européia (UE) foi capaz de conseguir em período de tempo similar, e saudou a visão da USAU para uma África que está cada vez mais aberta para negócios com empresas americanas.

Nada disso é particularmente novo, claro – os EUA há muito tempo usam seus diplomatas para fazer pressão em prol de políticas econômicas neoliberais. O que há de verdadeiramente novo na abordagem de Battle é que ele não acredita mais ser necessário esconder os impacientes interesses econômicos americanos na África. Enquanto diplomatas de eras anteriores invocavam a elevada retórica de desenvolvimento e democracia, Battle não faz esse esforço. Ao invés disso, ele fala abertamente sobre usar a diplomacia para facilitar o capitalismo monopolista, e sobre abrir o caminho para corporações dos EUA – nas palavras dele – ‘tirarem vantagem dos recursos africanos e explorarem suas enormes oportunidades de mercado’. De acordo com Battle, ‘se nós não investirmos no continente africano agora, nós vamos descobrir que a China e a Índia absorveram seus recursos sem nós, e nós vamos acordar e nos perguntar o que aconteceu com nossa oportunidade dourada de investimento’. Battler não poderia ser mais brusco – ou mais ofensivo – se tivesse tentado.

Não há como não considerar a abordagem de Battle chocantemente evocativa da ‘Corrida à África’ do século XIX, quando nações européias conspiraram para dividir o continente entre elas, cada uma reivindicando uma parte de seus recursos abundantes, sua mão-de-obra barata, e seus mercados inexplorados, enquanto garantiam a segurança de suas reivindicações através da presença militar. A única coisa que mudou atualmente é que os atores são diferentes, e a pilhagem está sendo conduzida com o total apoio da elite política africana e da UA, a qual – não surpreendentemente – depende parcialmente de fundos enviados pelos EUA através da USAID.

Antes que deixasse o auditório, Battle concordou em responder a algumas perguntas do público presente. Um estudante perguntou porque ele focava tanto no investimento de capital e liberalização econômica, mas sem discutir nenhuma vez normas de trabalho mais justas ou políticas de proteção do meio-ambiente ou mecanismos regulatórios elaborados para beneficiar os pobres. De fato, qualquer observador astuto de assuntos africanos entende que pobreza e instabilidade surgem não de regulação demais e investimentos estrangeiros diretos de menos, mas sim de regulação de menos e investimentos estrangeiros diretos que pilham e exploram sem beneficiar de forma relevante o público. O que a África precisa não é investimento pelo bem do próprio investimento, mas de investimento dentro de um planejamento que proteja os trabalhadores e o meio ambiente e garanta que a população em geral receba uma parcela justa dos recursos que são seu patrimônio. Mas Battle se recusou a responder a pergunta.

Eu também aproveitei um momento para fazer uma pergunta a Battle. Eu perguntei como que o trabalho dele enquanto funcionário público do governo dos EUA se tornou um trabalho pela proteção de interesses privados de corporações multinacionais. Eu não fiquei surpreso quando ele se recusou a me responder. Mas eu fiquei surpreso por ele não ter feito nenhum esforço para me contradizer. De fato, Battle estava inteiramente preparado para defender seu papel de facilitador da intervenção militar americana a serviço do capital privado americano. E isso sem nem ao menos as costumeiras reivindicações altruístas: ele nem chegou a acenar para os problemas urgentes da pobreza, desigualdade e exploração na África. Dado que a formação de Battle em assuntos africanos antes de seu posto na UA é praticamente inexistente, eu suponho que isso não deveria ser tão chocante. Ainda assim, eu esperava maior compaixão e discernimento crítico de um homem formado em teologia e educado em uma universidade historicamente negra.

Por mais que eu queira criticar Battle por sua falta de decoro diplomático, eu na verdade sou grato por isso – grato que ele tenha falado de forma tão brusca sobre sua diplomacia das canhoneiras, grato que ele tenha exposto os objetivos orientados pelo mercado da USAU, grato que ele tenha retirado as mistificações românticas que em geral encobrem a política externa dos EUA na África. Extinguiu-se assim a folha de figo do humanitarismo; Battle pôs por terra qualquer pretensão de que o governo Obama tem as melhores intenções em mente para o continente sitiado. De fato, a retórica de Battle representa nada menos que a formal inauguração de uma Nova Corrida à África, e de uma UA cúmplice que foi completamente cooptada pelo governo americano e pelo capital multinacional.

* Jason Hickel ministra cursos de estudos africanos na Universidade de Virgínia enquanto trabalha em sua tese de doutoramento em antropologia.

**Texto gentilmente traduzido pelo voluntário André Lobo, do programa das Nações Unidas Online Volunteering do qual a Fahamu e Pambazuka participam.

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