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A corrida de António Guterres para chegar a secretário-geral da ONU está repleta de obstáculos.

1. António Guterres iniciou [a 12 de abril] uma corrida de obstáculos que pode levá-lo até ao posto mais alto da ONU, mas que será, com toda a probabilidade, bem mais difícil do que aquela que o fez chegar, em 2005, a Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados. Trata-se da escolha do rosto de uma organização nascida há 70 anos no rescaldo da II Guerra Mundial, onde tem lugar o mundo todo e que envolve uma rede gigantesca de agências cujo objectivo é acudir aos mais pobres, proteger os refugiados das guerras, promover o desenvolvimento, coordenar a luta contra as epidemias, lutar pela educação e os direitos de quem trabalha, numa tarefa que se desenvolve quotidianamente fora dos holofotes.

Este é o lado meritório do sistema das Nações Unidas. Mas há outro, que se exprime no Conselho de Segurança, onde reside o verdadeiro poder, cujo currículo não é tão abonatório e que espera há mais de dez anos por uma reforma que seja capaz de traduzir a nova realidade mundial, tornando-o mais representativo. Os EUA ainda não se decidiram sobre ela. A Rússia e a China são ainda mais conservadoras. Em África ou na América Latina os países não se entendem sobre quem deve representá-los: a Nigéria ou a África do Sul? O Brasil ou a Argentina? Com ou sem direito de veto? A Europa aceita de boa vontade a entrada da Alemanha, Japão, Brasil e Índia. O novo secretário-geral terá também uma palavra a dizer que pode ser mais ou menos audível.

Os problemas não são de agora. Durante a Guerra Fria, o mundo esteve congelado pela ordem bipolar, fazendo do Conselho de Segurança um mero reflexo do equilíbrio do terror entre as duas superpotências.

Nos anos 90 do século passado, ainda foi possível pensar numa ordem internacional em que, citando Kofi Annan, “a soberania do indivíduo pudesse valer tanto como a soberania dos Estados”. A “responsabilidade de proteger” passou a ser um princípio inscrito na Carta das Nações Unidas. A “ingerência humanitária” chegou a fazer doutrina. A NATO e a União Europeia agiram em conformidade quando a desagregação da Jugoslávia transformou os Balcãs num campo de batalha onde a “limpeza étnica” trazia memórias insuportáveis.

Portugal estreou-se pela primeira vez nas operações militares da NATO na Bósnia e depois no Kosovo, quando Guterres era primeiro-ministro e numa escala comparável à dos nossos parceiros europeus. A diplomacia portuguesa não perdeu a oportunidade para colocar Timor no centro da agenda europeia, obrigando a União Europeia a olhar para ele à luz dos direitos humanos. “A questão decisiva era convencer o Presidente Clinton de que alguma coisa tinha de ser feita. No momento em que ele disse que era preciso intervir, imediatamente a Indonésia aceitou e o Conselho de Segurança votou unanimemente”. Guterres acrescenta: “Se fosse hoje, estou convencido de que nada disso seria possível”. Diria ao PÚBLICO, em 2007, que “a globalização não trouxe a possibilidade de mais justiça nem de mais tolerância, e a responsabilidade de proteger perdeu-se nas consequências políticas do Iraque”.

2. Quando se candidatou a Alto-Comissário, esse mundo pós-Guerra Fria já estava em vias de desaparecer. O 11 de Setembro, com o seu impacte na política externa americana, colocara a “guerra ao terror” no topo da agenda mundial, relegando os Direitos Humanos e a "ingerência humanitária" para um lugar secundário. George W. Bush preparava-se para o seu segundo mandato. O antigo primeiro-ministro português tinha criticado abertamente a guerra do Iraque, o que não lhe facilitou a vida em Washington. O seu passado europeu e a presidência da Internacional Socialista davam-lhe uma vantagem que a diplomacia portuguesa se encarregou de valorizar. Podia “agarrar no telefone e falar com um grande número de líderes mundiais”.

Hoje, passado dez anos à frente do ACNUR, não se pode dizer que a sua lista telefónica tenha diminuído. Contra ele, perfilavam-se candidaturas europeias dos grandes países ou dos grandes contribuintes para o orçamento do ACNUR, mas contava com o apoio firme da Alemanha e da Espanha. Condoleezza Rice não o conhecia. Ficaram na mesma mesa num jantar em Santiago do Chile, durante uma reunião da Comunidade das Democracias. Tiveram uma bela conversa. Tony Blair acabou por decidir apoiá-lo, apagando as últimas suspeitas de Washington. A lista de apoios que já recolhia, incluindo a China e para além da África e da América Latina, impressionou os americanos. Mas, sobretudo, como o próprio recorda agora, era o “preferido de Annan”.