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A palavra metáfora significa transporte. O caso Amarildo mais em potência do que em ato , transporta os significados das relações raciais no Brasil e revela seus desafios perante a sociedade brasileira. Por que o caso se manifesta mais em potência do que em ato? O que permite que negros despossuídos de poder continuem a ser invisibilizados, torturados e mortos em nosso país? O que o episódio revela sobre a permanência do racismo em nossa sociedade? Em quais instâncias este racismo se manifesta e se reproduz? O desaparecimento de Amarildo é pedagógico para que se compreenda como partes significativas de nossa sociedade e de nosso Estado se relacionam a partir dos aspectos raciais.

“Entre 2002 e 2010, segundo os registros do Sistema de Informações de Mortalidade, morreram assassinados no país 272.422 cidadãos negros, com uma média de 30.269 assassinatos ao ano. Só em 2010 foram 34.983.” A Cor dos Homicídios. Mapa da Violência, 2013, p. 38.

A palavra metáfora significa transporte. O caso Amarildo mais em potência do que em ato , transporta os significados das relações raciais no Brasil e revela seus desafios perante a sociedade brasileira. Por que o caso se manifesta mais em potência do que em ato? O que permite que negros despossuídos de poder continuem a ser invisibilizados, torturados e mortos em nosso país? O que o episódio revela sobre a permanência do racismo em nossa sociedade? Em quais instâncias este racismo se manifesta e se reproduz? O desaparecimento de Amarildo é pedagógico para que se compreenda como partes significativas de nossa sociedade e de nosso Estado se relacionam a partir dos aspectos raciais. Amarildo, que é “só mais um Silva que a estrela não brilha” , também é pai de família, pobre, morador de favela e ajudante de pedreiro. Amarildo é negro.

Segundo o inquérito policial, o ajudante de pedreiro Amarildo foi morto por tortura e visto pela última vez no dia 14 de julho, ao sair acompanhado de policiais militares de um contêiner da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha, no Rio de Janeiro. De acordo com o investigação, Amarildo, diagnosticado como epiléptico, foi morto após levar choques elétricos e ser asfixiado com um saco plástico. Depois de meses de pressão popular vinda de sua família e de várias pessoas do mundo, que perguntavam “Cadê o Amarildo?”, mais de dez policiais foram indiciados, entre eles um Major da Polícia Militar. O corpo de Amarildo, entretanto, continua desaparecido.
O caso chama a atenção para uma situação constante de medo e violência vivida por moradores de favelas cariocas. Para além da questão da territorialidade , há também a histórica situação do racismo experimentado pela sociedade brasileira. Ser “Favelado” e negro, no Brasil, representa uma dupla estigmatização. Segundo o dicionário Aurélio, estigma significa “cicatriz; marca; sinal; sinal infamante” . Estigmatizar era prática utilizada na Grécia Antiga e, naquela sociedade, estigmas eram “sinais com os quais procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, criminoso ou traidor – uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada, especialmente em lugares públicos”.

Os africanos escravizados, trazidos à força para o Brasil, foram estigmatizados desde a sua captura. Carregavam consigo a marca da corrupção e da degradação moral e espiritual, mas também o estigma territorial do continente africano, que, segundo Victor Hugo, renomado escritor francês, não possuía História. Amaldiçoados por Noé, todos os filhos de Cam, os camitas, estariam fadados à servidão. Por serem sem alma, indisciplinados, sem história e sem moral, confundiam-se às mercadorias que atravessavam os mares nos porões dos navios comerciais.

“Saem do canavial amarradas; e oh!, quantas vezes antes de saírem daí são vendidas... Com que desprezo se lançam seus corpos esmagados e despedaçados ao mar? Pregam-no finalmente e marcam com fogo ao sepulcro em que jaz; e assim pregado e sepultado, torna por muitas vezes a ser vendido e revendido, preso, confiscado e arrastado; e, se livra das prisões do porto, não livra das tormentas do mar, nem do degredo, com imposições tributos, tão seguro de ser comprado e vendido entre cristãos como arriscado a ser levado para Argel entre mouros”

Este estigma legitimava sua condição no Brasil escravista. Nas cidades republicanas, continuaram estigmatizados, sem moradia, sem dignidade, sem moral, classificados enquanto pertencentes à mais inferior das raças e possuidores dos piores atributos genéticos. Apesar de livre, a condição de ex-escravo e trabalhador braçal desqualifica o negro na República. O racismo formulado nos fins do século XIX desdobrou-se em teorias do branqueamento que buscaram garantir e consolidar a civilização branca no Brasil através da diminuição da população e da influência negra no país. Estigmatizados por possuírem a pele negra e a memória territorial africana, refugiaram-se nos morros, encostas e cortiços. Apesar das remoções, já praticadas no início do século XX pelo também prefeito Pereira Passos (acho que cabe uma nota explicativa pelo uso de “também”), as “Favelas” formaram-se com a massiva presença de negros, mulatos e pobres, atribuindo-lhes novas territorialidades. Na passagem do século XIX para o século XX, contudo, a “Favela” – ou as territorialidades compostas por negros, mulatos e pobres – trazia uma marca negativa que, como o episódio do arraial de Canudos deixa claro, seria a antítese do país e da noção de ordem que se queria construir sob a República nascente: Sertão/litoral, Favela/cidade, Branco/Negro, Civilização/Barbárie, Ordem/Desordem, Progresso/Atraso.

A “Favela”, portanto, seria a representação da desordem e a ausência moral, tanto por sua (des)organização territorial quanto por seus habitantes: negros, mulatos e pobres. A “Favela” ainda é vista e representada como a negação da cidade e da urbanidade. É sabido que parte significativa de nossa sociedade constrói sua visão de mundo – e de sociedade – a partir de hierarquizações raciais e territoriais construídas e reforçadas ao longo das experiências históricas brasileiras. Por exemplo, embora sejam os moradores de favelas e periferias as maiores vítimas da violência urbana oriunda do enfrentamento ao tráfico de drogas, pois sentem cotidianamente seus efeitos, são taxados de maneira genérica de serem coniventes com o tráfico. Cabe lembrar que, no início do inquérito policial sobre o caso, o delegado Ruchester Marreiros acusou Amarildo de ser responsável por guardar armas para traficantes e chegou a pedir a prisão de Elisabete Gomes da Silva, esposa de Amarildo, por associação ao tráfico. Entretanto, o delegado titular da 15ª DP, Orlando Zaccone, não considerou tal pedido por falta de evidências que associassem o casal ao tráfico. Em caso mais recente, ao noticiar a morte do jovem negro identificado como Paulo Roberto Pinho de Menezes, os veículos de imprensa e os jornalistas responsáveis não hesitaram em informar que o rapaz era usuário de drogas e possuía passagens pela polícia. A mãe do jovem, Fátima dos Santos Pinho de Menezes, e vizinhos afirmam que Paulo Roberto foi torturado e morto por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) de Manguinhos. Neste sentido, é possível que grupos dominantes no interior da sociedade imputem um estigma a outros em posição inferior, que por sua vez podem assumir tal estigma, que passa a servir como um forte diferenciador. Neste caso, um diferenciador racial, territorial e moral, para além de critérios de renda ou de instrução. Amarildo é ajudante de pedreiro, pobre e favelado. Amarildo é negro.

De acordo com o estudo “A Cor dos Homicídios no Brasil”, feito pelo coordenador da área de estudos da violência da Faculdade Latino-Americana (FLACSO), Júlio Jacobo Waiselfisz, de 2001 a 2010, enquanto a morte de jovens brancos no país caía 27,1%, a de negros crescia 35,9%. O Mapa da Violência 2013 aponta que, em 2010, quase 35 mil negros foram assassinados no país. Outro dado da pesquisa revela que, entre 2002 e 2011, morreram 50.903 jovens brancos e 122.570 jovens negros – uma diferença de aproximadamente 150%. Apesar da disparidade, os números não representam o crescimento dos homicídios de negros – que aumentaram de forma moderada no período – mas, sim, as fortes quedas dos homicídios de brancos, o que nos permite retornar à condição permanente de estigmatização por conta da cor da pele.

Com base em dados do Sistema de Informações de Mortalidade, do Ministério da Saúde, a pesquisa revela que no Brasil as maiores vítimas de violência são jovens negros, com baixa escolaridade. O racismo é a maior motivação para os crimes. Também é possível afirmar que as estratégias e políticas de segurança e proteção da cidadania incidem diferencialmente nos segmentos da população, tendo em vista a cor da pele e as territorialidades.
Waiselfisz aponta três fatores determinantes para este quadro: em primeiro lugar, a cultura da violência presente em nossa sociedade. De acordo com o pesquisador, no país, existe o costume de se solucionar conflitos com morte, herança das raízes escravagistas no continente. Em segundo lugar, a grande circulação de armas de fogo e, por último, a impunidade. “Os números deveriam ser preocupantes para um país que aparenta não ter enfrentamentos étnicos, religiosos, de fronteiras, raciais ou políticos. Representam um volume de mortes violentas bem superior ao de muitas regiões do mundo, que atravessaram conflitos armados internos ou externos” , avalia o pesquisador.

Sobre a ausência aparente de conflitos armados no país, cabe ressaltar a adoção de políticas públicas de segurança altamente militarizadas, sobretudo – mas, ultimamente, não apenas – nos limites/fronteiras territoriais das favelas/periferias brasileiras. Em um comentário do consultor de segurança pública Rodrigo Pimentel, no telejornal da Rede Globo, RJ TV 1ª edição de 18 de junho, ele afirma que “fuzil deve ser utilizado em guerra, em operações policiais em comunidades e favelas. Não é uma arma para se utilizar em área urbana”. A hierarquização entre “Favela” e área urbana é clara e, portanto, estende-se a seus habitantes. Também está claro que o enfrentamento ao crime em favelas deve ser encarado como uma guerra. Em 2010, o então secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, afirmou que “um tiro em Copacabana é uma coisa. Na Favela da Coréia, é outra”. Em junho deste ano, a jornalista da Globo News Leilane Neubarth, ao transmitir ao vivo o noticiário sobre uma manifestação de moradores da Cidade de Deus, expropriou dos manifestantes – negros em sua maioria – o civismo, a brasilidade, a dignidade e a legitimidade do ato, afirmando que ali encontravam-se “pessoas sem sentido”.

A guerra de combate às drogas, travada pelas polícias – militar e civil – e endossada por setores de nossa sociedade, aponta para a necessidade urgente do debate sobre a desmilitarização das Políticas de Segurança Pública, e não apenas das Polícias Militares. Mas não apenas, pois a institucionalização do racismo também deve ser combatida. A “cultura de violência”, composta pela estigmatização racial e territorial e o militarismo das Políticas de Segurança Pública, produzem, portanto, casos de tortura e morte que incidem prioritariamente sobre jovens negros, pobres e favelados.

A Secretaria Nacional de Juventude, reconhecendo este problema “histórico que afeta especificamente a juventude negra” , criou estratégias para enfrentá-lo. Segundo Fernanda Papa, da Secretaria Nacional da Juventude da Presidência da República, a criação do Plano Juventude Viva, no ano passado, foi uma primeira resposta do governo federal ao problema e às demandas de movimentos sociais por uma atuação mais forte do governo. Em diferentes programas, a estratégia tem cerca de 40 ações em conjunto com estados e municípios com objetivo de colocar a juventude negra na pauta das políticas públicas. Nesta direção, a Lei 10.639/03, que completa dez anos neste ano, possui papel fundamental na obrigatoriedade do ensino de história do continente africano e da cultura afro-brasileira, atuando na valorização dos negros no Brasil e seus antecedentes.

É fundamental, portanto, debater a associação perigosa da estigmatização racial e territorial à militarização das práticas policiais, no interior das Forças de Segurança Pública. Mas não apenas. É necessário que a sociedade atente-se para este ato, - o desaparecimento de um “ajudante de pedreiro” morador de Favela – percebendo-o em sua potência. O caso reúne características que não são fortuitas. Antes de ser “ajudante de pedreiro”, Amarildo é negro. Negro, pobre e favelado. Vítima do racismo presente historicamente em nossa sociedade. Vítima de Políticas de Segurança e de uma polícia militarizadas. Vítima da guerra às drogas. Estigmatizado racial e territorialmente. Amarildo é como os milhares de negros, igualmente sequestrados e torturados desde a travessia do Atlântico, desumanizados, perdendo nomes e sobrenomes. São invisibilizados diante das marcas infamantes da degradação moral. Trabalhadores braçais, Amarildos, que transportam em si e compartilham diversos significados, diversas identidades, experiências e estigmas. Negros, pobres, ajudantes de pedreiro e favelados. Mais importante do que nos perguntarmos Cadê o Amarildo?, é questionar Por que nossa sociedade e algumas de suas instituições permitem que eles ainda sejam estigmatizados, analfabetos, pobres, sequestrados, torturados e mortos...

Pablo de Oliveira de Mattos é negro, historiador, mestre pela PUC-Rio, doutorando no programa de Pós-Graduação em História Social da FFLCH/USP. Um dos autores do livro História da África Contemporânea, Ed. Pallas/Ed. PUC, 2013.

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