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Num país democrático, o momento das eleições é o mais importante, pois é aí que o povo escolhe quem quer para governar, e expulsa aqueles que governaram mal. A democracia permite fazer revoluções de cinco em cinco anos, sem pegar em armas, apenas com canetas e papel. É por isso que muitas vezes se chama às eleições “a festa da democracia”.

No entanto, não é com espírito de festa que Angola se aproxima das eleições gerais constitucionalmente determinadas para 2017. A razão é simples. O sentimento geral é que não se trata de verdadeiras eleições livres e justas para escolher ou mudar de governo, mas sim de mais um plebiscito para manter no poder um ditador vitalício. E assim se perde a ideia de revolução, de festa e de democracia – as próximas eleições em Angola serão um acto formal, o cumprimento de um calendário, e não um momento democrático.

Analisemos o que se está a passar para a preparação do plebiscito.

Numa primeira fase, toda a dissidência interna foi punida. O ano de 2015 caracterizou-se pela detenção e coacção judicial de todos os oponentes do regime. Desde os 15+2, a Mavungo e Rafael Marques, passando pelo estranho massacre do Monte Sumi. Houve prisões, mortes e julgamentos. O regime exercitou os seus músculos, e o povo percebeu bem que quem se opunha ia preso.

Depois de flexibilizar os músculos, o regime entrou numa fase de amaciamento, usando a velha técnica do pau e da cenoura. Assim, 2016 foi o ano da descompressão. Libertaram-se os opositores, e, mostrando quem manda, decretou-se uma amnistia geral. O significado último da amnistia foi apenas provar quem é o soberano. O soberano é aquele que tem o poder de decretar a amnistia. Pune e não pune conforme deseja e lhe apetece. Já Carl Schmitt, teórico alemão do Direito, escrevia que a soberania é a capacidade de decidir a excepção. José Eduardo dos Santos é soberano porque decidiu a excepção.

Este movimento de pau e cenoura, prisão e amnistia, não passa de uma domesticação sociopsicológica da população.

De seguida, foram tomadas as medidas jurídicas de controlo eleitoral. Essas medidas foram vertidas numa nova Lei do Registo Eleitoral que basicamente esvaziou os poderes da independente Comissão Nacional Eleitoral (CNE) e os entregou ao Ministério da Administração do Território (MAT), que, nos termos da Constituição, é um órgão auxiliar do presidente da República. Este ponto é importante: os cadernos eleitorais são definidos pelos serviços do presidente da República e não pela CNE, ao arrepio do preceituado constitucionalmente.

A nível interno, o reforço do poder acentuou-se, com a entrega da Sonangol a Isabel dos Santos e toda a sua capacidade de geração de receitas. Mais de 2/3 das receitas nacionais ficaram nas mãos da filha do presidente, e a restante maioria, nas mãos de amigos. No âmbito desta estratégia de consolidação do poder interno, Manuel Vicente e os técnicos petrolíferos foram politicamente aniquilados.

Acresce a isto a estratégia de atrito e desgaste a que têm sido submetidos os partidos da oposição. Um rapto ali, uma carga de pancada acolá, uma paulada aqui. Pequenos incidentes que, tomados em separado, são menores, mas que em conjunto instalam um clima de medo. Não é seguro pertencer à oposição. Pode existir sempre um “popular mais exaltado” que nos dê uma pancada, ou um polícia distraído que nos confunda com um ladrão e nos detenha ou nos dê um tiro.

No meio deste cenário, a liberdade de expressão, a não ser a praticada via internet, sobretudo na rede social facebook, é quase inexistente. Os jornais foram comprados e encerrados, as televisões são detidas pelo Estado ou pela família de JES. As rádios emitem mal. Há um abafamento democrático sibilino, discreto, mas bastante eficaz.

Portanto, por muito que o pão aumente, que a roubalheira dos bandidos que governam Angola seja exposta, que a gasolina suba de preço, a população continua condicionada por um hábil e inteligente trabalho. Os protestos acontecem em surdina. Quase todos estão descontentes, centenas de milhares expressam a sua oposição nos meios de comunicação digitais, mas poucos se atrevem a dar o passo rumo à mudança eleitoral, ou quando tentam são impedidos.

A solução não é retornar a 1992 e criar um país dividido eleitoralmente, pronto a entrar numa guerra fratricida. Mas também não é plebiscitar regularmente o poder político que roubou o futuro de Angola.

Face ao exposto, não existe qualquer hipótese de que as eleições de 2017 sejam livres e justas, e permitam assim dar voz ao real desejo da população.

Que fazer?

A primeira hipótese é fazer o que tem sido feito no passado, sem resultados. Ir a eleições, denunciar a fraude e acatar os resultados. Num país normal, esta é sempre a solução. É duvidoso que o seja em Angola, onde desde 1974 têm sido usadas as mais diferentes estratégias para manter sempre os mesmos no poder, com os resultados que estão à vista: um país muito rico de gente muito pobre.

Tem-se visto que a Assembleia Nacional apenas serve como plateia que carimba e valida os actos presidenciais, não tendo na verdade qualquer relevância. Por isso mesmo, a eleição, chamada geral, não é mais que um plebiscito para a continuação de José Eduardo dos Santos. Isto não é democracia.

A segunda hipótese é boicotar as eleições e deixar que JES concorra sozinho. Esta atitude foi tentada há poucos anos pela oposição venezuelana a Hugo Chavez, e teve como resultado deixá-lo fazer todos os disparates e mais algum sem oposição, levando a Venezuela ao beco sem saída em que ainda se encontra, também como Angola.

Efectivamente, há que não confundir democracia com a mera realização de eleições. A democracia é muito mais do que isso. A democracia é mais do que a simples decisão maioritária eleitoral. Impõe também o respeito pelos direitos fundamentais do indivíduo. Por isto mesmo, Ronald Dworkin, filósofo e jurista norte-americano, afirma que a democracia consiste no tratamento igualitário de todos os cidadãos, e que, se tal objectivo em princípio se alcança através da tomada de decisões por maioria, outras vezes, de modo a proteger os direitos iguais de pessoas iguais haverá que suspender as decisões das maiorias e deixar actuar outros mecanismos, como os judiciais.

Nesta medida, o conceito de democracia resulta de três pilares: vontade popular, protecção dos direitos fundamentais e independência do poder judicial. É da conjugação destas vertentes que resulta a democracia. E podem existir situações em que a democracia seja mais protegida por outros mecanismos que não as decisões maioritárias, como refere Dworkin.

Acreditamos ser este o caso na presente situação angolana. Este regime já não conta com aquilo a que Marsílio de Pádua chamava o governo por consentimento. Os cidadãos têm de alguma forma que prestar consentimento ao seu governo. Aliada ao conceito de democracia surge então a ideia de consentimento popular.

É por demais evidente que já não existe qualquer consentimento popular relativamente à governação de José Eduardo dos Santos. A questão é como proceder à sua substituição.

Face aos condicionalismos apresentados, a solução é só uma:

Criar um amplo consenso entre as forças políticas e a sociedade civil, que permita estabelecer um governo de transição e conciliação nacional encarregado de despartidarizar e profissionalizar as instituições nacionais, desde a Administração Pública, às Forças Armadas, às Forças de Segurança, aos Tribunais, etc. Após esse processo, seguir-se-ia a elaboração de uma Constituição nova, que seria referendada. E de seguida haveria lugar a eleições livres e justas.

O significado de tudo isto é inequívoco: qualquer mudança em Angola passa pelo desmantelamento do actual sistema político-constitucional e pela assunção, por parte de todos os agentes políticos, da necessidade de iniciar um novo caminho de transição nacional para uma democracia autêntica.