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O crescimento massivo, tanto de instituições de ensino superior como do universo de estudantes por elas abrangidos, tem colocado enormes desafios à funcionalidade do subsistema e à própria qualidade do seu ensino em Moçambique. Têm surgido, nos últimos anos, muitas vozes críticas questionando a substância, a relevância e a credibilidade do ensino superior moçambicano.

As instituições de ensino superior em Moçambique têm crescido vertiginosamente, com especial índice ao longo dos últimos 15 anos. Este facto tem como principais factores o princípio de liberalização do ensino superior e o da sua massificação, para responder aos desafios de desenvolvimento do país. É um discurso político do Governo do dia. Entretanto, este crescimento massivo, tanto de instituições de ensino superior como do universo de estudantes por elas abrangidos, tem colocado enormes desafios à funcionalidade do subsistema e à própria qualidade do seu ensino. Têm surgido, nos últimos anos, muitas vozes críticas questionando a substância, a relevância e a credibilidade do ensino superior moçambicano.

Com efeito, o crescente reconhecimento da importância das universidades para o desenvolvimento social e económico de Estados e comunidades tem levantado uma série de questões sobre como os benefícios e o impacto destas instituições podem ser devidamente canalizados e optimizados. Estas preocupações derivam tanto da emergente consciencialização do papel das próprias universidades na sociedade, como também em consequência de extrínsecas forças do mercado e da intervenção governamental, ambas profundamente influenciadas pelos imperativos económicos globais.

As universidades moçambicanas não têm como estar alheias aos processos e dinâmicas do ensino superior à escala global. Elas têm sofrido influência de reformas curriculares ocorridas em outros quadrantes do mundo, donde se destacam o processo de integração regional na África Austral e o Processo de Bolonha. Paralelamente, tem havido uma corrosão da função tradicional do ensino superior como bem público ao serviço da resolução das aspirações de desenvolvimento humano do povo moçambicano e a sua transformação em escravo do “capitalismo educacional” – a universidade vai perdendo a sua autonomia e tende a ficar sujeita às exigências do mercado. Paralelamente, as reformas curriculares que têm sido introduzidas no ensino superior são em grande medida resultado de dinâmicas exógenas ao próprio contexto e condição nacionais, limitando-se quase que exclusivamente, e segundo a proeminente intelectual moçambicana Hildizina Dias, “a importar e a imitar modelos educacionais que foram pensados para outros espaços com condições diferentes”.

O discurso político do dia atribui ao ensino superior moçambicano, através da Lei nº 27/2009, de 29 de Setembro (Lei do Ensino Superior), o desafio de o ver devidamente expandido, de qualidade, que gere conhecimento, que responda às necessidades de Moçambique e que seja objecto de reconhecimento internacional. Todavia, para a sua prossecução, este subsistema de ensino tem de fazer face não só aos desafios de desenvolvimento do país como também aos seus próprios desafios de expansão e de consolidação. Constituem actualmente desafios de desenvolvimento de Moçambique a consolidação da paz e unidade nacional (perante a tensão político-militar prevalecente), a revitalização económica (principalmente através da agricultura e da indústria extractiva), o melhoramento da precariedade social (combate à pobreza e provisão de serviços públicos de qualidade) e a inserção do país no mundo. Constituem desafios do ensino superior moçambicano, dentre outros, a qualidade de ensino por si ministrado, a sua consolidação e diferenciação funcional, o seu financiamento, a sua governação e a investigação.

Entretanto, da vontade política expressa pelo Estado moçambicano no sentido de potenciar o ensino superior como uma das principais alavancas para responder às exigências de desenvolvimento do país até à sua efectiva operacionalização há ainda um longo caminho por percorrer. Apesar do alargamento da acessibilidade ao ensino superior à escala nacional, da diversificação de cursos de formação e tipos de instituições, bem como da introdução de novos ciclos de formação (mestrados e doutoramento), a qualidade dos produtos, graduados e resultados de investigação está abaixo dos patamares à nível regional e internacional. Há, igualmente, um enorme desequilíbrio entre os cursos das ciências sociais e os das ciências naturais, bem como a ameaça de expansão descontrolada de instituições de ensino superior.

Nem todas as instituições de ensino superior em Moçambique têm recursos humanos em quantidade e qualidade suficientes, na sua estrutura de gestão (particularmente as instituições privadas). As instituições públicas têm ainda os seus reitores ou directores nomeados pelo poder político, comprometendo a sua democraticidade interna. Denota-se nelas a prevalência de uma gestão de contingência, em detrimento de uma gestão estratégica, e a monitoria e controlo das atividades desenvolvidas nessas instituições é ainda débil. Paralelamente, verifica-se um baixo nível de investimento em serviços de apoio pedagógicos (bibliotecas, laboratórios e recursos tecnológicos), sociais (residências e refeitórios estudantis), culturais (anfiteatros) e desportivos. A exiguidade de recursos humanos especializados, a falta de acções de inspecção e de avaliação das instituições de ensino superior e o fraco cumprimento da legislação que as regula, para além da sensação de banalização do ensino superior, têm-se destacado como alguns dos seus mais sérios constrangimentos.

Algumas das principais críticas que têm sido feitas ao ensino superior moçambicano têm a ver com a proliferação descontrolada de instituições de ensino superior, com uma significativa inclinação para as ciências sociais e humanas do que para as áreas técnicas, com os indicadores generalizados de baixa qualidade dos seus graduados, com a quase inexistente componente de pesquisa e extensão universitária e, por último, com a sua fraca ou inexistente competitividade à nível internacional. Outrossim, todas as instituições de ensino superior, tanto privadas como públicas, dedicam-se quase que exclusivamente apenas ao ensino (predominantemente em cursos de graduação), deixando a investigação e a extensão universitária para um plano secundário. Tais constatações impõem a necessidade de se “reinventar” o ensino superior em Moçambique.

Existe salvação?

A larga maioria dos cursos leccionados no ensino superior moçambicano, tanto público como privado, são na área de ciências sociais e humanas, em detrimento das áreas politécnicas. Claramente que este desequilíbrio deverá ser um desafio por contornar, nos próximos tempos. Igualmente, uma maior aposta deverá ser feita para cursos vocacionados para áreas do ensino técnico-profissional, de modo a melhor responderem ao desafio da redução da pobreza, crescimento económico e desenvolvimento social, que constituem os novos desafios da agenda nacional de desenvolvimento. Portanto, uma pertinente reforma curricular, em função das dinâmicas de desenvolvimento do país, não deverá descurar os desafios pertinentes, como a actualização científica, a revisão de perfis profissionais e do graduado ou os ajustes curriculares nos planos de estudo ou nos programas das disciplinas. A maior parte dos graduados do ensino superior sai da universidade com deficiências formativas (cursos genéricos, docentes insuficientes e mal formados, insuficiência de bibliotecas, laboratórios e recursos tecnológicos), não são formados em áreas economicamente produtivas e muitos deles não conseguem singrar no mercado de emprego. Isto deverá ser contornado o mais breve possível.

O ensino superior moçambicano, para além de ter de reflectir na sua componente curricular propostas diversificadas que retratem as necessidades do país em todas as áreas de conhecimento, deverá conciliar as práticas educativas tradicionais com as contemporâneas, assentes não só na transmissão de conhecimentos como também na apropriação desse conhecimento pelos estudantes, docentes e pesquisadores para resolver os seus desafios pessoais, profissionais e do país, no geral. Neste aspeto, destaca-se grandemente o desenvolvimento de uma abordagem didáctica e de intervenção que se inspire num ensino que não visa a socialização e a instrução do estudante, como também a sua emancipação, realização e humanização – bem como na inclusão de conteúdos curriculares de áreas transversais e que tenham um profundo impacto para o país (cidadania, associativismo, cultura, desporto, responsabilidade ambiental, HIV/SIDA, questões de género e inclusão de minorias, currículo local, etc). Com efeito, o graduado do ensino superior deverá romper com a postura actual de mero receptor de conhecimento e passar a ser mais crítico, interventivo e inovador, capaz de desenvolver autonomia intelectual, espírito de liderança e proactividade na área da sua especialização.

Um dos principais constrangimentos derivados dos esforços de massificação do ensino superior em Moçambique são as infraestruturas físicas e tecnológicas. Existem até hoje instituições de ensino superior sem instalações próprias e apropriadas para actividades de leccionação, de investigação, de acomodação e de lazer. Certamente que estas fragilidades atentam decisivamente contra a qualidade de ensino e de aprendizagem, sobretudo dos cursos que dependam grandemente da disponibilidade de bibliotecas com acervos atualizados, de laboratórios apetrechados, de espaços físicos apropriados e da existência de recursos tecnológicos (sobretudo material informático e acesso à Internet). Para tornar ainda mais sombrio o cenário, segundo assevera o académico Patrício Langa, não há ainda em Moçambique uma agência nacional com autoridade legal e legitimidade científica para aferir a qualidade do ensino superior no país. Soluções enérgicas deverão centrar-se na rigorosidade do licenciamento de instituições de ensino superior pelas estruturas competentes e no reforço da capacidade institucional do Estado na sua regulação, monitoria e avaliação.

Verifica-se também uma significativa “penetração” do poder político na estrutura directiva das instituições públicas de ensino superior, onde os seus dirigentes máximos são ainda nomeados pelo poder executivo (e não por órgãos colegiais internos). Este facto condiciona grandemente a sua autonomia, para além de, no caso das instituições de ensino superior privadas, torná-las reféns de interesses de grupos de interesse (económicos, religiosos, ideológicos, etc.) que intervêm na sua estrutura accionista e/ou directiva. Esta perniciosa relação de dependência é um empecilho sério para o seu normal funcionamento e um esforço contínuo para a sua mitigação deverá ser perseguido por estas instituições.

Paralelamente, as instituições de ensino superior moçambicanas deverão privilegiar as novas formas de resolução dos desafios do seu processo educativo. Uma destas alternativas é a apropriação e disseminação do uso das tecnologias de comunicação e de informação (informatização e acesso à Internet) não só no processo de ensino e aprendizagem, como também na recolha, sistematização e difusão de conhecimento científico junto da sociedade, através da sua componente de pesquisa e extensão.

Para finalizar, as instituições de ensino superior moçambicanas deverão também priorizar a interação com os diversos stakeholders que possibilitem a realização da sua missão social. Elas deverão desenvolver estratégias robustas de comunicação e de publicitação do seu produto junto do espaço público (marketing dos seus serviços, divulgação dos cursos e do seu grau de empregabilidade, de forma a ficarem mais atractivas e competitivas), através da celebração e efectiva operacionalização de parcerias com instituições públicas e privadas, nacionais e estrangeiras (não só na área de ensino), bem como da realização, publicação e publicitação de actividades de investigação e de extensão universitária junto das comunidades. Como se pode depreender, um futuro melhor ainda é possível.

* - Edgar Barroso é um activista moçambicano, envolvido em campanhas sociais de voluntariado e de engajamento político em Moçambique. É actualmente estudante de mestrado em estudos africanos, na Universidade do Porto, Portugal.