Vilma. Vilma Reis - A gente sempre brinca que, numa sociedade racista, mulher negra tem de ter nome e sobrenome, senão o racismo bota o nome que quiser“. O Reis, herdou da avó, que a criou e foi seu “primeiro movimento negro“. Fazia questão de repetir que as netas não iam “limpar a casa dos brancos“, como ela fazia. Vilma guardou as palavras, mas, quando saiu de Nazaré das Farinhas para retornar a Salva d o r, onde nasceu, não viu outro jeito. Dos 14 aos 19 anos, trabalhou como empregada domé...read more [4]
Vilma. Vilma Reis - A gente sempre brinca que, numa sociedade racista, mulher negra tem de ter nome e sobrenome, senão o racismo bota o nome que quiser“. O Reis, herdou da avó, que a criou e foi seu “primeiro movimento negro“. Fazia questão de repetir que as netas não iam “limpar a casa dos brancos“, como ela fazia. Vilma guardou as palavras, mas, quando saiu de Nazaré das Farinhas para retornar a Salva d o r, onde nasceu, não viu outro jeito. Dos 14 aos 19 anos, trabalhou como empregada doméstica. Em 17 de fevereiro de 1988, resolveu sair do emprego, em plena sext a fe i ra de Carnaval, e não voltou mais. “Procurei meu pai, deixei minhas coisas com ele e fui para Arembepe, que era o lugar mais lindo que eu conhecia. Fiquei lá conversando com as mulheres das águas...“. Na volta, foi morar num pensionato no Dois de Julho e apontou jogo do bicho embaixo de uma árvore no Chame-Chame. Quando terminou o ensino fundamental, tentou a vida em São Paulo, mas, ”sem redes de apoio”, voltou logo para a Bahia. Ainda ouvindo a voz da avó para que não parasse de estudar, matriculouse no Colégio Central e virou militante do movimento estudantil, mas, com o tempo, sua cabeça ficou 100% voltada para o que depois ficaria conhecido como ”feminismo negro”. Fez da causa a sua missão. Com 25 anos, passou no curso de sociologia da Ufba e desde 2004 coordena o Ceafro (Educação e Profissionalização para a Igualdade Racial e de Gênero). Na sua dissertação de mestrado, Atucaiados pelo Estado, analisou as políticas de segurança pública implementadas em bairros populares de Salvador, e não esconde que essa é sua ”cachaça”. Aos 39, está fazendo doutora d o e quer voltar a conversar com as mães que perderam seus filhos para a violência.
Hoje, a principal bandeira do movimento negro na Bahia é a questão dos homicídios que vitimam jovens negros?
VR - É uma das principais. Está havendo um genocídio da juventude negra.Nossa cidade em janeiro chegou à marca de 11 homicídios por dia. Enquanto isso, o Conselho Nacional de Segurança Pública (realizado no final de agosto), se constituiu numa verdadeira aberração, porque a sociedade civil foi minoria. Aí é brincadeira dizer que vai mudar a cara da segurança pública, que é patrimonialista e trata a população negra no Brasil como inimiga.
Sua dissertação sobre esse tema é de 2005. A senhora acredita que a segurança melhorou no governo Wagner?
VR- O governo Wagner vive as contradições de um País estruturado pelo racismo institucional. Isso se configura com toda força na segurança pública, que historicamente vive sob controle do Poder Executivo. Mas estamos diante de uma polícia que não respeita Poder Executivo. Wagner, no começo do governo, nem chegou a mudar o comando da PM...Foi, levou não sei quanto tempo para mudar, mas a questão nem é essa.Você tem de redirecionar a política.Tem de chegar na frente das câmeras e dizer: ‘Esse governo é contra a matança‘. Porque o menino branco de classe média que está em conflito com a lei não é abatido. E não nos interessa que ninguém seja abatido.
Nós queremos uma polícia que respeite a população, seja ela branca, negra, pobre ou rica. Para muitas mulheres negras da Bahia, a única ou principal forma de contato com o Estado é ir buscar seus filhos mortos no IML ou nos hospitais. Não nascemos para enterrar nossos filhos. E estamos diante de uma geração de mulheres negras que está indo enterrar um, dois, três filhos, como aconteceu no dia 16 de junho com aquela mãe em Canabrava, que num único dia perdeu seus três filhos assassinados pela polícia. Lamentavelmente, estão sempre dizendo que houve troca de tiros, que foi auto de resistência, essa aberração criada depois do AI-5. Temos de enfrentar esse álibi para matar. A questão é: até quando a sociedade brasileira vai achar que não tem nada a ver com isso? Outro problema é que as vítimas desses homicídios não têm direito à investigação. Ah, mas quando a médica morre, aí a investigação é imediata. Essa mesma polícia não se sente com responsabilidade de responder nada a 83% da população negra desta cidade? A senhora deve ser vítima de um discurso que associa defensores dos direitos humanos a defensores de bandidos.
Rá-rá! Esse discurso não chega só a mim, como a militantes valorosos, como o professor Hamilton Borges, que é um dos coordenadores da campanha Reaja ou será morto/ Reaja ou será morta, que é um movimento a que me filio. Muitos militantes têm sido criminalizados, inclusive por pessoas que participam deste governo. Na minha dissertação, trabalhei com a Operação Beiru. Em 1996, a polícia invadiu o Beiru com 250 policiais, e o saldo foi de 52 mortos em um mês. Passei meses lendo os laudos cadavéricos no IML e entrevistei 20 mães dos jovens assassinados. Fui à região da Fazenda Grande entrevistar uma mãe, e um mesmo policial matou seus três filhos, o último na frente dela. Estamos falando disso. E nós somos a maioria! Os brancos têm o dinheiro que têm porque nós sobrevivemos.
Temos conhecimento suficiente para dirigir o País, mas não vamos conseguir fazer isso se eles continuarem nos matando. É muita bala perdida pra nosso lado, a bala pode perder a direção de vez em quando... O secretário César Nunes, que tem orgulho de dizer que não é secretário de Segurança, mas de polícia, e diz que se um policial for derrubado, ele vai derrubar 10 do outro lado... Uma autoridade dizer isso? Entendo que a bancada da bala precise criminalizar a mim e outros militantes, porque é assim que eles se tornam mais ricos. Enriquecem graças ao medo da classe média que vive em condomínios racialmente blindados, que cria seus filhos em escolas racialmente blindadas. Eles precisam do nosso trabalho para ir se bestializar em Walt Disney... Os jovens alemães quando viajam pelo mundo têm vergonha do nazismo.Nossos jovens não têm vergonha da escravidão. Isso é muito grave.
O que a senhora acha do Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), que foi implantado no bairro de Tancredo Neves em agosto?
VR - Nós estamos com o Pronasci atravessado na garganta. Nossa principal crítica é que ele não pode ser gestado pelas forças de segurança. Pude observar experiências nos EUA, em San Diego, em que áreas estigmatizadas receberam um alto investimento, e a segurança pública ficou aqui, ó, em stand by. A prioridade tem de ser investir em outras frentes, profissionalização, saúde, a chegada da juventude à universidade.
Quem tem de coordenar Pronasci é a Sepromi (Secretaria de Promoção da Igualdade), e não uma secretaria que tem uma visão criminalizadora da população negra. Como é que podem pensar numa bobagem de “Mulheres da paz“, onde as mulheres podem ser identificadas como x-9, delatoras, e passar a correr riscos dentro da sua comunidade? Imagine o papo dos caras, ‘mancha criminal‘. ‘O Nordeste de Amaralina tem uma grande mancha criminal‘.
Isso é de um governo que quer dialogar com a sociedade? Então como é que a gente pode aguentar um Pronasci pelos peitos? Tá difícil, né. A polícia geralmente rebate que não pode ser racista sendo formada, em sua maioria, por homens negros. O policial que está fazendo o trabalho sujo cumpre o papel que os brancos não têm coragem de cumprir. Entrevistei os coronéis da polícia e encontrei poucos negros. Por mais que você tenha às vezes um comandante negro, como foi o coronel Santana ou o coronel Mascarenhas agora, eles estão botando a cara na frente para legitimar essa ação. Mas a polícia tem como parar essa carnificina. No dia que eles quiserem parar, eles vão parar. O racismo lombrosiano, aqui organizado por Nina Rodrigues, faz a cabeça da polícia até hoje.
Eles não precisam importar modelo nenhum de tolerância zero. Aquilo que Kátia Alves (exsecretária de Segurança) fez no final dos anos 90, mandando os altos oficiais para serem treinados em Nova York, era um miseenscène . Eles têm um modelo próprio de subjugar negros. O Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra, vinculado à Sepromi, que a senhora preside, procurou o Ministério Público para pedir que programas como o Na Mira e Se liga Bocão saíssem do ar.
A senhora também considera esses programas racistas?
VR- Ter essas aberrações como Na Mirae Se liga Bocão é a prova de que aqui os direitos humanos não são respeitados.
Nós fomos ao Ministério Público e dissemos ao promotor que esses programas deveriam sair do ar. E o MP lamentavelmente não conseguiu nem que eles obedecessem ao TAC (Termo de Ajustamento de Conduta). Esse papo de censura... Você tem direito enquanto não viola direitos. Desde o ano passado, o Delegado-Geral Joselipo Bispo baixou uma portaria proibindo os delegados de abrirem as carceragens, e eles estão desrespeitando isso todos os dias. Se o Estado mostra aquelas pessoas antes de elas serem julgadas, está em crime confesso.
Para esses agentes policiais, essas pessoas não são dignas nem de ter sua imagem protegida.
Por que a senhora ainda trabalha com o conceito de raça, há muito superado cientificamente?
VR- Quem nos impôs o conceito de raça foi o racismo. Nós sabemos que a raça é humana. O que foi cunhado como argumento para legitimar a colonização entre os séculos 16 e 19 é o que formulou o conceito de raça, é o lombrosionismo. Não opto pelo conceito de etnia porque a gente não está morrendo de etnicismo, estamos morrendo de racismo. E para desmontá-lo, temos de nos mover com esse conceito, reposicionandoo na história. As comunidades indígenas brasileiras têm como se identificar dentro do conceito de etnia.
Um é tupinambá, outro é pataxó hã-hã-hãe... Nós não tivemos essa condição, porque fomos divididos brutalmente no tráfico transatlântico.
Obviamente um racista como Ali Kamel diz que aqui não tem isso, que é algo que o movimento negro está importando, que é perigoso ter políticas afirmativas...
Mas o País é formado por muitos povos, somos frutos dessa mistura. Às vezes parece que o movimento negro de alguma forma nega nossa ‘morenice‘.
Opa! O recurso do argumento da mestiçagem é a zona de conforto de quem não quer promover direitos.
Você, Tatiana, como uma mulher negra de pele clara... Não tenho o direito de te identificar, você que se autoidentifique, mas se você for disputar espaços na USP, lá imediatamente vão te identificar, porque a ‘branquitude‘ dos baianos termina em São Paulo, e a ‘branquitude‘ dos brasileiros acaba no aeroporto... A elite brasileira é contra políticas afirmativas, mas, quando vai estudar em universidades no exterior, se beneficia das cotas para latinos.
A senhora está dizendo que a mestiçagem é uma falácia?
VR- Não, você pode se autoidentificar como mestiço, mas você não pode usar isso para diluir todo mundo e dizer: não precisa políticas afirmativas, porque não tem negro e não tem branco. A televisão, o mercado de trabalho e a polícia sabem que aqui tem branco e tem negro, sim. O que a gente quer é que as pessoas fiquem em paz com a sua identidade, que possam se olhar no espelho e estar bem consigo mesmas, com seu cabelo. Como diz Elisa Lucinda: ’Pô, chamar meu cabelo de ruim? Ele já falou mal de você?‘. As pessoas crescerem achando que tem cabelo bom e cabelo ruim? É se diminuir demais.
* Vilma Reis é Coordenadora do Ceafro, na Universidade Federal da Bahia. Entrevista publicada em
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