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Por Elisio Macamo*
A constituição tem que ser suficientemente robusta para permitir que essas ideias e perspectivas se confrontem em paz e no interesse nacional. E o interesse nacional também não é fixo e sagrado. Reformula-se ao sabor do debate interno. O resto é conversa que não nos leva a lado nenhum.

A constituição

A indecisão é como um enteado, reza um ditado africano: Se não lava as mãos (o enteado, claro), é porco; se as lava, está a gastar água. O nosso País tem futuro, independentemente do que nós fizermos. Só que esse futuro pode ser o que não queremos. Para que o País tenha o futuro que nós queremos precisamos de mostrar poder de decisão. Daí a necessidade de o perspectivar.

A questão que se coloca, contudo, é de saber como devemos perspectivar o futuro. É mais do que evidente que faz parte desse exercício saber donde viemos, do que dispomos e contra que perigos nos devemos precaver. Em princípio, um exercício dessa natureza devia ter como efeito secundário a sensibilização das pessoas para a renitência da realidade ao desígnio humano.

Vimos ao longo desta série de postagens alguns aspectos dessa renitência. Um País, por exemplo, deve a sua essência à vontade da sociedade. É uma essência falsa na medida em que a vontade social é dinâmica. Não é, contudo, arbitrária. Ela forma-se continuamente na confrontação de vontades. Como, nestas circunstâncias, fixar a identidade do País para sempre?

Vimos também que essas vontades são articuladas publicamente por meio de visões. Para se ter uma visão é necessária a capacidade de reflectir uma experiência social e histórica específica. Cada qual fala do seu canto. É possível que, nisso, exprima a experiência de outros. O mais provável, todavia, é que esse catolicismo seja sentido como sendo opressor. Até ao ponto de formulação de visões contrárias.

O lado prático de uma visão articula-se por meio de cenários. Estes últimos fazem medições acríbicas sobre tudo quanto possa influir sobre a materialização da visão. Os cenários são verdadeiras instituições totalitárias. Enfeitam o palco, atribuem papéis e escrevem a peça. Estão tão convencidas da sua infalibilidade que qualquer contratempo em direcção à visão é um erro ou desvio. Esquecem, contudo, que uma boa parte do nosso quotidiano é feita do erro. No quotidiano domina uma lógica discursiva que mede a plausibilidade das coisas e acções segundo critérios locais que permitem várias soluções. Trata-se de uma lógica diferente da dos cenários: cartesiana e dirigida à solução de problemas. Só uma solução é válida.

Os cenários estão seguros de si porque têm um objectivo nobre na mira: o desenvolvimento. Se Marx ressuscitasse não era sobre o capitalismo que iria escrever. Ele escreveria sobre o fetichismo do desenvolvimento. É explorador e ópio ao mesmo tempo. Estamos a ser disciplinados em seu nome, mas em prol de tudo quanto desejamos: alimentação, roupa, abrigo, liberdade.

Como é que os outros se safaram? Que lições podemos aprender deles? Tudo indica que no caso dos outros, mesmo os que a eles se juntaram recentemente – caso dos tigres asiáticos – o acaso desempenhou um papel importante. Estes últimos aplicaram-se e foram recompensados pela conjuntura. O acaso não quer dizer aqui que eles deixaram tudo ao critério da sorte. Quer apenas dizer que eles se saíram bem apesar de todos os erros que cometeram: ditaduras, proteccionismo, exploração do homem pelo homem. Na Europa foi também a mesma coisa e a obra continua.

Posto isto, a elaboração de uma visão não parece a tarefa mais premente que se coloca a Moçambique. A elaboração de visões, talvez. Visão da Frelimo, da Renamo, da Fumo, do Pimo, do Pademo, etc. Para serem úteis essas visões, e aprenderem, têm que se confrontar todos os dias. No processo vão ser reformuladas, refinadas e ajustadas à realidade. E isso é difícil de fazer em comissões especiais com mandato fixo. Não importa o mérito incontestável dos seus membros.

A tarefa mais premente que se coloca a Moçambique, uma tarefa de todos os dias, é de garantir regras de jogo claras e justas para a grande obra de preservação da integridade política, social e económica do País. A constituição proporciona essas regras de jogo. Se os consensos alcançados na discussão da Agenda 2025 não são passíveis de integração na constituição, então a sua utilidade parece limitada. A constituição é a única visão possível porque de visão não tem nada: ela estabelece apenas um quadro de acção que não é imune à alteração e aperfeiçoamento pelas pessoas se a sua maturidade assim o exigir.

*Elisio Macamo é filósofo e docente em Bayreuth, Alemanha